D. Paulo Evaristo Arns: um incansável defensor dos Direitos Humanos 15/12/2016 - 13:00
Em 1983, um jovem de rua, Joílson de Jesus, foi morto a pontapés por um procurador de Justiça aposentado. À época, o Cardeal Arns foi ao velório na Casa do Menor, abriu a Catedral para um culto ecumênico em memória ao jovem e exigiu justiça.
“Basta de morte de crianças, jovens, trabalhadores, homens e mulheres que constroem a vida. Joílson simboliza todos os meninos e meninas de quem tem sido tirada a possibilidade de viver”, relata a capa do O SÃO PAULO de 15 de dezembro de 1985.
Essa ação de Dom Paulo é um dos muitos relatos de alguém que incansavelmente lutou pelos direitos humanos e pela democracia, como em 1987, quando, durante os debates da Constituinte, publicou dezenas de artigos reforçando o papel da nova Carta Magna e da participação da população nesse processo.
“Os cristãos terão ainda deveres especiais. Nessa época, mais do que em todas as outras, deverão eles implorar a presença e as luzes do Espírito Santo, em favor daqueles que vão abrir caminhos, definir rumos e indicar meios para chegarmos àquilo que é chamado por todos de ‘bem-comum’”, escreveu em um dos textos da seção “Encontro com o Pastor”, de 1987.
Em 1975, por exemplo, quando da morte do jornalista Vladimir Herzog, o Cardeal Arns abriu as portas da Catedral da Sé para que um ato inter-religioso fosse realizado (foto). Mesmo diante do endurecimento do regime militar, não se furtou em cobrar das autoridades que respostas fossem dadas à sociedade.
Na ocasião da celebração, o Cardeal Arns afirmou: “Nosso Deus é um Deus de esperança. Acontece facilmente que esquecemos o nosso Deus, quando achamos que sozinhos resolvemos os problemas. Mas Ele está aí, na hora do caos, na hora da desesperança, nos acontecimentos sem saída. Ele se apresenta como Deus da esperança e da salvação, volta a apontar-nos o caminho da justiça, a caminhada da solidariedade nas sendas da paz. É hora de unirmos os que ainda querem olhar para os olhos do irmão e ainda querem ser dignos da luz que desvenda a falsidade. A esperança reside na solidariedade. Aquela solidariedade que é capaz de sacrificar os egoísmos individuais e grupais no altar de uma pátria, no altar de um estado, no altar de uma cidade”, expressou.
“Neste momento, o Deus da esperança nos conclama para a solidariedade e para a luta pacífica, mas persistente, crescente, corajosa, em favor de uma geração que terá como símbolos os filhos de Vladmir Herzog, sua esposa e sua mãe. O Deus da Vida, o Deus da História e o Deus da Esperança, coloca em nossas mãos a missão, exigente, mas pacífica, oposta a qualquer arbitrariedade e a qualquer violência, no que temos em nós de divino e de mais humano: Construamos a Paz, na Justiça e na Verdade”, complementou na mesma celebração.
Em 2013, durante uma homenagem organizada pela família do jornalista Vladimir Herzog, a Congregação Israelita Paulista (CIP) e a Comissão Nacional de Diálogo Católico-Judaico, o rabino Henry Sobel recordou como foi organizado aquele ato inter-religioso e a ação de Dom Paulo na sua realização.
“Eu estava consciente de que era preciso fazer algo mais para que as barbaridades não acontecessem outra vez. Procurei, então, Dom Paulo Evaristo Arns, um homem iluminado. Eu acreditava que entre religiosos, talvez fosse possível encontrar algum caminho. Na época, a Cúria Metropolitana de São Paulo era o grande centro das denúncias contra a violação dos direitos dos presos políticos. Fui à casa de Dom Paulo, no Sumaré, na noite do dia 29, uma quarta-feira. Conversamos por duas horas, então, nasceu a ideia, que partiu de Dom Paulo: ‘que tal realizarmos um ato em homenagem a Herzog?’, indagou o Cardeal. Isso nunca havia sido feito no Brasil. Eu acrescentei para que o ato não seja visto como um ato judaico, vamos fazê-lo na Catedral da Sé. É óbvio: o problema não era um problema judaico, era um problema político. O ‘Vlado’ poderia ter sido um budista, o destino teria sido o mesmo. Dom Paulo concordou”.
‘Brasil: Nunca mais’, um livro importante
Na defesa dos direitos humanos e na missão de não deixar que as ações realizadas na ditadura militar caíssem no esquecimento, o Cardeal Arns e uma equipe de profissionais juntaram documentos e relatos para editarem o livro “Brasil: Nunca mais”.
“Cinco anos de intenso trabalho resultaram nesse livro de trezentas e poucas páginas. Quiséramos agradecer a todos os que sofreram muitas vezes até o último limite de sua resistência física e psíquica e assim mesmo tiveram a coragem de legar-nos o seu depoimento, para que nunca mais se repetisse no Brasil o que com eles aconteceu”, escreveu Dom Paulo em uma edição do “Encontro com o Pastor” de 1985.
No livro, como descreve ele no artigo, “aparecem, quase diríamos, de viva voz, o que se sabe sobre ‘subversão’, tortura, vítimas, violência contra lei e pessoas humanas”. E prossegue, dando uma mensagem de esperança para o povo brasileiro: “Nutrimos a firme esperança de que estamos ingressando num tempo de paz e de liberdades democráticas que sustentem essa paz. Daí o nosso compromisso de lutarmos sem violência, mas com firmeza permanente em favor do respeito à pessoa humana”.
Reconhecimento
Em 1985, o Cardeal Arns se tronou o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Nansen – concedido anualmente a um indivíduo ou uma organização em decorrência do reconhecimento pelos serviços dedicados aos refugiados.
Na coluna “Encontro com o Pastor” do O SÃO PAULO de outubro de 1985, o Cardeal recordou a importância da presença da Igreja no enfrentamento de uma questão que é tão atual e tão antiga ao mesmo tempo. “As organizações religiosas – sem excluir o apoio das entidades civis – cumpriram, quanto possível, o imperativo evangélico de amar o próximo como a si mesmo, salvando dezenas de milhares e vidas, só na cidade de São Paulo”.
Em mensagem publicada na mesma edição, o então secretário-geral da ONU, Javier Pérez de Cuéllar, cumprimentou Dom Paulo e destacou que o prêmio concedido ao Cardeal foi “em vista de seus esforços desinteressados e contínuos na proteção dos direitos humanos, assegurando o bem-estar aos refugiados na América Latina”.
“Figurando entre os membros mais vulneráveis da sociedade, devem os refugiados, muitas vezes, enfrentar as dificuldades mais duras para reconstruir suas vidas. Durante anos, o Cardeal Arns usou sua considerável autoridade moral para abrir as portas das igrejas e dos conventos a fim de dar ajuda aos refugiados de diversos países da América Latina. Como incansável defensor dos direitos humanos, fundou a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, a qual se tem dedicado a defender os perseguidos e os oprimidos em todo continente. A Comissão e as Igrejas providenciam a colaboração de grande número de juristas e assistentes sociais para ajudar aos refugiados, bem como a outras pessoas na solução de seus problemas legais e sociais. Os escritórios do Cardeal contêm a expressão comovente de uma fé profunda na dignidade humana e na liberdade individual, o que lhe tem inspirado a ação exemplar”, afirma a mensagem.
Prêmio da Paz no Japão
Em 1994, foi a vez do Japão agradecer a Dom Paulo seu trabalho em favor da construção de uma sociedade de paz. Segundo a Fundação Niwano, o Cardeal Arns recebeu o 11º Niwano “por sua colaboração inter-religiosa para promover o desenvolvimento, conservar o meio ambiente e criar um mundo de paz com a participação de cristãos, budistas, mulçumanos e judeus”.
O Prêmio Niwano da Paz tem a finalidade “encorajar indivíduos e organizações que contribuem, de maneira significativa, para a cooperação inter-religiosa, a fim de promover a causa da paz no mundo”. O Prêmio recebe o nome do seu fundador, Nikko Niwano, primeiro presidente da Organização leiga budista “Rissho Kosei-kai”. Com o valor recebido, 20 milhões de ienes, algo próximo a US$ 190 mil, foi construída a Casa de Oração do Povo da Rua.
Edcarlos Bispo e Daniel Gomes, Jornal “O São Paulo”, Edição Especial